Eu e Banda Falcatrua em 1996. Não é instagram, é Polaroid mesmo. |
Eu tinha 20 anos. Nunca tinha tido uma namorada, só rolos. Ela era linda, inteligente e parceira, do tipo que todos meus amigos sonhavam (e queriam) namorar. O estranho é que eu a conhecia desde criança, uma grande amiga de minha irmã e nunca tinha sequer considerado ter algo com ela, a via apenas como uma amiga. Sem falar no fato dela ser inatingível. Imune às tentativas de quem quer que fosse.
Pois um dia, em uma praça onde me criei e sempre brincava, havia uma festa da comunidade. Estávamos, eu e vários amigos, incluindo ela, conversando em uma roda. Chegaram dois caras não sei de onde e começaram a conversar com ela, dando em cima descaradamente. Eu estava do lado dela, e por algum motivo, provavelmente porque ela queria se livrar dos caras, pegou em minha mão e disse: deixa eu apresentar meu namorado. E ficamos de mãos dadas por algum tempo, eles "vazaram" e ainda ficamos assim por alguns minutos. Demos risada, nos divertindo com a cara dos manés.
Isso já deve ter acontecido com você. Alguém te fala alguma coisa ou faz alguma coisa, e de repente você percebe, de uma hora pra outra que está apaixonado. Pode ser um gesto, um abraço, uma palavra, um jeito de segurar o garfo ou a forma com que ela se lambuza comendo um picolé. Pode ser um fio de cabelo descendo pela nuca, ou os olhos que parecem tristes e te olham e abrem um sorriso. Assim, de repente assim. Sem razão assim.
E foi assim, através de um enroscar de mãos em uma tarde com sol que me vi apaixonado. Ou melhor, obcecado, que é apenas outro nome para paixão. Não conseguia parar de pensar nela, de fantasiar como seria beijá-la, como seria estarmos sós, dormindo abraçados. Pensava até em como chegaríamos a ficar velhinhos e como seriam nossos netos. A mente voa quando estamos apaixonados, mas pousa sempre no mesmo lugar, hora após hora, voltando ao objeto de nossa afeição como um avião que nunca consegue dar mais do que algumas voltas em torno do aeroporto e retorna.
A obsessão virou uma espécie de desafio e objetivo fixo. Depois de muitas idas e vindas, creio que uns 6 meses, muitas coisas ditas (e não ditas), muito papo ao telefone velho com rodinha, um dia, finalmente me declarei (ao telefone, não tive coragem de falar ao vivo). Sim, eu te amo. Sim, quero ficar contigo.
Não lembro exatamente quanto tempo depois dessa declaração finalmente nos beijamos, em uma chácara, após um show da minha banda Falcatrua (o nome diz tudo) na garagem de quem viria a ser meu melhor amigo. Lembro de estar perto do Golf vermelho de meu pai, detalhe que parece insignificante mas que faz parte dessa cena que tantas vezes revi em silêncio no cinema de minha memória. Lembro que não foi fácil, houve uma espécie de resistência. Não era inclusive minha primeira tentativa, houve uma investida anterior que terminou com um virar de rosto humilhante. Mas perseverei, valia a pena.
E então o primeiro beijo. Dizer que foi um momento mágico é obviamente um clichê, o que paradoxalmente não torna a experiência menos mágica. "Só nos tornamos cúmplices da vida, quando dizemos de todo coração, uma banalidade". Eu te amo é tão banal e tão difícil e tão clichê e tão raro. Ao menos para mim. Economizo eu te amos como quem salva dinheiro numa poupança que nunca é gasta, acumulando sentimentos mas sem revelar o saldo de minha conta, com medo de ser roubado. E no entanto, dessa vez eu saquei toda minha poupança acumulada. Por que guardar tanto dinheiro? Guardar dinheiro não traz felicidade, assim como guardar amor. Ter dinheiro e ter amor trazem (geralmente) felicidade, mas só se usufrui mesmo quando esses ativos são usados.
No fim das contas, meu primeiro namoro chegou ao fim uns 6 meses depois. Motivos? Que adianta pensar nisso agora. Meu amor não acabou de uma hora para outra, pelo contrário, o carreguei como um peso por um bom tempo. Carreguei todo ele, pois senti como se ela tivesse me devolvido todo o amor que havia nela por mim. Mas no fim, o fim é apenas o início de um novo começo, como diz uma música. Demorou, mas passou. Ainda somos amigos, embora nos falemos pouco. Ainda gosto dela, de um outro jeito, como gosto de meus amigos.
Por que escrevi tudo isso? Esse post era para ser diferente. O título eu já tinha há muito tempo, mas o recheio era outro, muito mais científico, impessoal, cerebral. Quase um manifesto e uma súplica. Por algum motivo, hoje, no evento Fronteiras do Pensamento, em meio a uma palestra fantástica da Sylvia Earle, ganhadora do prestigiado TED Prize, desencantei a rechear o título no bloco de anotações do evento. E o que me veio foi essa história. Porque o afeto não tem lógica, ele vem e vai como que por magia. Quando vem, não podemos fazer nada, ele já é. Quando foi, já foi.
Podemos criar nossas histórias, podemos marcar um momento em que nos apaixonamos, mas no fundo são histórias que criamos para dar coerência à nossas vidas, para preencher o vácuo de explicações das coisas talvez mais importantes. Assim como criamos Deus para preencher o vácuo de nossa existência, inventamos o amor para dar continuidade à nossa existência. Tenho certeza de que não sou a única pessoa a desejar uma lógica cristalina do afeto. E no entanto, sei que essa lógica, se existe, não é cristalina e, além disso, é impermeável à explicações. Resta ficarmos maravilhados quando ele acontece. "Never lose the sense of wonder", nas palavras de Sylvia.
E se você olhar bem de perto, como diz a música, o amor, na verdade, está à nossa volta.
Basta abrir a mão e gastar o que não foi feito para ser guardado.