Contexto: rapaz do interior, solitário, numa cidade grande. Querendo conhecer pessoas e fazer "amizades".
Início: internet
Meio: restaurante / casa
Fim: táxi
Sites de relacionamento. Quem nunca se cadastrou, pelo menos deu uma olhada, nem que seja por curiosidade. Enquanto eu navegava por aí, encontrei um tal de www.hotornot.com. Hot or Not? Você carrega uma foto sua ali, ela é revisada por uma pessoa real para garantir que não contenha pornografia/etc, e quando a foto é aprovada, as pessoas começam a te dar nota, de 1 a 10. É como uma pesquisa pra saber se você está, literalmente, bem na foto. Porque foto na internet a gente sabe como é. Nos esforçamos para encontrar aquela em que o ângulo esteja ok, o sorriso perfeito, o cabelo arrumado, e por aí vai. Eu também tento fazer o meu melhor, sem destoar muito da realidade - ou seja, minha foto é essa coisa mesmo que você está vendo aí.
Buenas. Mas o legal é que você também fica dando nota pros pobres diabos como eu que se sujeitam a essa pesquisa. Os números de 1 a 10 representam coisas diferentes para pessoas diferentes, mas no geral há uma certa concordância quanto ao que é bonito e feio (tema para outro post sobre psicologia evolucionária). E todos temos curiosidade em saber como somos vistos. Então achei divertido.
A dura realidade. Depois de algumas avaliações você já pode ver sua média (por ex. 8) e sua posição: "você é mais quente [hotter] do que 78% dos homens neste site". Estes são os dados atuais do meu perfil e me deixam feliz até. E isso só pode significar que 1) as pessoas têm um péssimo senso de beleza, ou 2) minha foto está tão boa que na verdade os que me avaliam estão avaliando outra pessoa e não o eu "real". Me recuso a acreditar na segunda.
Tudo isso para dizer que você também pode se comunicar de uma forma rudimentar com quem você achar bonito. Não lembro se eu a procurei ou ela me achou. Sei que trocamos e-mails e começamos a conversar no msn. A bem da verdade, a foto dela no hotornot estava meio difusa, uma foto de cima para baixo, ela dentro de uma piscina escorada na borda, com óculos escuros e só as mãos para fora. Sinais claros de que 1) há algo a esconder ou 2) sou tão segura de mim que não preciso colocar uma foto excelente. Me recusei a acreditar na primeira. E eu estava certo, como você vai ver.
Após algumas conversas, chegou o momento do convite para jantar. Fiquei super animado e comentei com um amigo, e ele naturalmente quis ver a foto da moçoila. Os olhos de lince dele focaram na única parte do corpo exposta de forma clara: as mãos. E vaticinou: cuidado que ela tem mãozinha gorda. Mas essa é uma avaliação muito subjetiva. E eu não ia desmarcar o jantar porque um amigo achou que a mãozinha estava meio gorda. Vamos dar o benefício da dúvida.
E lá fui, disposto até a ir a um lugar meio distante, em uma cidade enorme. Fui anunciado na portaria do prédio e me instruíram a aguardar no lobby. O momento da verdade estava muito próximo. A tensão atinge o pico quando a porta do elevador se abre. Quem viria lá de dentro? Que surpresas (boas) estariam me aguardando?
Vamos ver em câmera lenta agora.
O barulho do elevador aportando no térreo. djjjjjjjjjjjjjjjjjjmmmmmm
A primeira visão do braço empurrando a porta de aço. squeeeeeeeeeeeeeeek
E, finalmente, a pessoa por inteiro. Tã-rã!
Putz, mas tanta tensão por nada. Não era ela. Ufa! Por que se fosse, eu estaria muito enrascado - digamos que essa pessoa era grande em todos sentidos (horizontal e vertical). Tudo bem vamos esperar mais um pouco. Mulher sempre atrasa, diz que está descendo mas ainda vai fazer a chapinha. Enquanto isso fiquei observando a pessoa se aproximar, o elevador estava distante, e seguindo regras básicas da civilização, esbocei um sorriso e um boa noite.
No entanto - sempre há um no entanto - a pessoa vinha diretamente à mim, e a cada passo sorria um pouco mais. Eu sorri também, por educação. Mas a pessoa estava sorrindo muito. Eu já estava constrangido, pois parecia que a pessoa estava me esperando. E foi chegando. E foi sorrindo. E foi chegando. E foi sorrindo. E foi chegando. Chegando. Chegando.
Chegou.
- Oiiiii
- Hmmm.. oi
- Frederico? [o nome do meu amigo]
- Hmmm.. sim
- Eu sou a [Preta Gil, eu pensei. Só pode ser brincadeira isso aqui. É uma pegadinha! Cadê a câmera?]
- Hmmm.. ahhhh.. claro... hehe... [Beijinho, beijinho] [E agora? E agora? Se eu seguisse a brilhante dica de um amigo escolado em furadas, teria inventado uma imensa dor de barriga na hora, adiando o encontro para outro dia - o dia de amanhã, eternamente o dia de amanhã]
- Então, vamos?
- Hmmm.. ah sim... claro.. vamos...
Tenho que aprender a dizer não. Foi a única coisa que ficou na minha mente em todo trajeto até o restaurante, cuidadosamente escolhido. Agora já era tarde. Bater o carro estava fora de questão. Então o melhor que podemos fazer é encarar como uma oportunidade de reflexão, uma reflexão cara, mas ainda assim uma reflexão.
Conversando sobre nós mesmos, fico sabendo que ela é modelo. Rá, tem senso de humor a menina. Mas olho para o lado e percebo que ela falou sério. Pensei: até pode ser, já vi anúncios em que usam mulheres não exatamente no melhor de sua forma, para ficarmos num eufemismo. Melhor não entrar nesse papo.
Por algum motivo, ao chegar no restaurante, ela fica indecisa e diz que não está a fim de ir no que escolhi. Foi talvez a única coisa certa que ela fez naquela noite. E sugeriu um estilo cantina, menos bacanudo e mais barato. Agradeci em voz baixa. E rumamos. O jantar até foi engraçado, eu pude comer sem me preocupar em puxar assunto pois ela puxava todos assuntos. Puxava, desenvolvia, acabava e puxava outro. Em resumo, ela era amiga de pessoas famosas, e era desejada por um cara extremamente rico, que já tinha proposto casamento. Questionei a sanidade desse cara, mas vai saber. Talvez eu só precisasse vê-la com outros olhos. Deixar os preconceitos de lado, buscar a beleza interior. Sim, eu teria que buscar bem fundo, quase uma busca à um tesouro afundado no mar a 15 mil metros de profundidade sem equipamento de mergulho. Mas quem disse que isso é impossível (fora as leis imutáveis da física)?
Acaba o jantar e chega a hora tão aguardada. Levar a moça embora, voltar para casa e nunca mais aceitar sair com uma pessoa cuja única foto é dentro de uma piscina só com as mãos para fora. Ou melhor, nunca mais sair com ninguém só baseado na foto. Ou melhor, nunca mais sair com ninguém conhecido através de um site de relacionamento.
Já no carro, pergunto:
- Bom, então vamos para...
- Vamos pra sua casa?
- É, hmmm, ahhh, hmmmm
- É perto?
- Ahhh hmmm hummmmm
- Depois você me leva pra minha casa.
Esse foi o segundo momento da noite em que lembrei da necessidade absoluta de desenvolver a capacidade essencial de dizer não no momento certo. Movido agora por uma curiosidade sobre até onde essa história me levaria, fui pra casa. Rezando para que o meu amigo, com quem divido o apartamento não estivesse acordado. Ele não ia se aguentar. Tenho certeza que ia me chamar num canto e me dar uns bofetões pra deixar de ser banzo. Mas ele já estava dormindo. Era um dia de semana.
Chegou um momento em que o papo acabou. Eu já tinha ido tão longe, a história já estava tão trágica, que agora iríamos em frente. Sim, nos beijamos. Ela quis ir para o quarto. Medo. Não vou contar detalhes, por respeito a você, leitor, que teve força suficiente para ler este post gigante até aqui. Mas posso sim revelar que não houve o que você está pensando que houve. O que ocorreu foi um momento único, que desde aquele momento entitulei de "conchinha". Não tenho como representar essa "conchinha" mimicamente. Então, use sua imaginação e visualize o que entitulo a partir de agora como o momento "conchão". Pense numa sequóia, a qual você nunca vai conseguir abraçar por inteiro, a não ser que seja o homem elástico.
A noite passou e não consegui dormir direito na posição "conchão". Acordei bem antes do horário usual, mas nem um pouco disposto a levar a Preta Gil para casa novamente. Inventei então que estava atrasado, dei carona até chegar ao meu trabalho, parei no ponto de taxi que há em frente, rezando para que nenhum colega tivesse resolvido acordar antes e chegar naquele horário. Dei R$ 50 a ela pra pagar o táxi, o que representou o maior custo benefício entre todos meus gastos até então.
Dias depois ela me liga dizendo que precisa devolver o troco (???). Digo que não posso, mas que se ela fizer questão, pode deixar aqui na portaria e me entregam.
O que eu não contei e vou contar agora para vocês entenderem melhor a Preta Gil é o tipo de coisas que ela me disse:
- "Teu carro está bem velho né. Tá na hora de trocar."
- "Ah a essa altura você já deveria ter comprado um apartamento. Meu amigo tem um apartamento de R$ 10 milhões aqui perto"
- "Essa tua camisa não tá mais na moda, o legal agora são as camisas do jacaré"
Como eu não estava a fim de DR sem ter o R, não dei continuidade. Nem à conversa nem ao R. Só pensei: quem essa mulher acha que é? A vontade era de falar tudo que eu achava que ela deveria mudar. Mas ia demorar muito. Ou não, na verdade, ela tinha que mudar tudo, nascer de novo com outro DNA.
O que eu aprendi então com a Preta Gil é o seguinte:
A pior combinação possível para o ser humano é ser feio por dentro e por fora. O "por fora" até se ajeita. Mas o "por dentro", nem com operação de transplante.