segunda-feira, outubro 02, 2006

Selffuckfillingprophecy

A porra da profecia auto-realizável...

A vida tem sentido, não tem? Depende de quem responde. Se você acredita que tem, então tem. Mas objetivamente falando a vida não tem um sentido, e Freud já dizia isso, uma das (poucas) coisas em que ele acertou.

No livro “Cachorros de palha” (Editora Record, R$29,52) o filósofo John Gray nos convence de que nossas vidas não têm sentido. Ou melhor, que não somos nem menos nem mais do que qualquer animal. Nos consideramos tão especiais, somos os únicos a ter isso, os únicos a fazer aquilo, os senhores da Terra e do Universo. Deus foi feito à nossa semelhança. Então somos especiais.

Mas no fundo vivemos numa ilusão. É ruim? Na maior parte das vezes não. O auto-engano é a mais sofisticada de nossas invenções, principalmente porque não nos damos conta dela. E ele também acerta quando diz que não buscamos a verdade, só sofredores querem a verdade.

Nós queremos sexo, comida e dinheiro.

O sexo como motivação última e muitas vezes inconsciente de nosso comportamento, como frisava Schopenhauer. Aliás, a maior parte de nossa vida é inconsciente, muito mais do que nos damos conta ou do que gostaríamos. Nos imaginamos senhores da Terra, mas não somos nem mesmo senhores de nós mesmos. O livre-arbítrio, a capacidade de escolha são as maiores ilusões criadas pelo nosso cérebro. Não há self, não há homúnculo, a maior parte de nossas decisões são tomadas sem sabermos porque, sem que tenhamos tido uma influência consciente. O acaso faz maior parte de nossa vida do que gostaríamos, as maiores decisões a nosso respeito foram tomadas por nós sem nenhuma possibilidade de nossa influência (onde nascemos, quem são nossos pais, nossos genes).

E no fundo somos muito parecidos uns aos outros, muito mais parecidos do que diferentes, por qualquer medida que se queira usar. Nós, como espécie, somos incrivelmente parecidos entre si. No entanto, esquecemos disso e acabamos nos concentrando nas diferenças, que naturalmente são o que se destaca. Mas assim, como todos os leões de todos documentários parecem ser exatamente o mesmo leão, aos olhos de um leão qualquer homo sapiens seria indistinguível dos outros.

Apesar de tudo, nos achamos especiais, e isto não deve surpreender, pois faz parte de nosso maquinário evolutivo, mas é certamente é algo muito exagerado. Cada animal tem uma especialidade, tem aspectos únicos: golfinhos se comunicam por infra-som, caçam presas com sonar, tubarões percebem mudanças no campo elétrico, pombos se localizam através de um sistema de orientação em seu bico, num processo que só agora começa a ser entendido. E os exemplos são infinitos.

Sim, podemos ser o único animal que ri, que pensa no futuro. Mas por outro lado nosso olfato é horrível, nossos bebês são os mais frágeis, nossa visão noturna é a de um cego em comparação à visão dos felinos, nossa audição é a de um surdo comparada entre muitas deficiências. Cada animal desenvolve capacidades únicas que os permitem se adaptar a seu meio e sobreviver. Nada de espantoso nisso. Quer dizer, a vida é espantosa, mas o processo é rigorosamente o mesmo para todos seres vivos.

E a morte nos confronta com o que não queremos confrontar: a preciosidade da vida, este breve instante que temos e que é o único que teremos para fazer algo. Não vale convocar a vida eterna. Temos horror ao fim. Não nos percebemos como parte de algo maior. E esse algo maior não está se lixando para ninguém, não há salvação pois não há do que se salvar.

E agora meu vô não está mais aqui em casa. Ervino Aloysio Flach. Foi enterrado hoje pela manhã, em Alto Feliz, ao lado de minha vó que não conheci. E agora meu primo Gustavo está sentado na cadeira que meu vô usava todo o dia, em nossa casa, em Nova Milano, onde ele conviveu conosco nos últimos 20 anos.

A chuva é constante, a cerração é a usual, o clima é de um dia de inverno como tantos outros. Mas agora há um vazio a mais. Uma cadeira sem dono. Um quarto sem ocupante. Um livro sem leitor. A poltrona, fica ao lado de uma janela de onde se pode ver o jardim, com as flores que ele tanto gostava e cuidava, além de algumas araucárias e casas ao longe. Não é uma vista espetacular, mas é bonita. O calendário na parede marca o dia em que ele saiu para o hospital, 7 de agosto. Um calendário que ele sempre virava a página, sempre com uma foto de um animal e um dizer supostamente sábio.

E agora não há mais como saber se ele gostava do calendário, se ele gostava dos bichos, dos dizeres, dos dois ou de nenhum. Há mais um monte de coisa que nunca mais saberemos. Sempre parecia que haveria tempo para contar mais histórias. Tempo para sentar e fazer entrevistas, desvendar o passado de todos antepassados, desvendar as vidas e as histórias. Eu me culpo por isso, me culpo por ter ouvido pouco as histórias de meu vô, de ter lhe contado tão pouco da minha vida. Mas nem para meus pais eu conto muito. E o vô gostava de falar, falava de muitas coisas, de amigos, desafetos, visitas, parentes. Falava de e falava com. E às vezes não deixava ninguém falar :)

Mas agora todo mundo pode falar, eu posso falar horas com ele e não vai haver resposta. Tenho que me consolar com as respostas que tive, com os exemplos que ele me deu. No geral, teve uma vida aparentemente resignada, mas é aparente pois no fundo ele tinha suas motivações e fez suas escolhas. Teve sofrimentos e alegrias, como qualquer um. Amava sua família. Amava sua terra. Amava a música. Amava as flores. Amava a leitura. Amava ensinar. Amava falar. Amava contar suas histórias. Amava viver. Amava distribuir, não queria guardar para si, não tinha praticamente nada mas tinha o que o fazia feliz. Estava com amigos, estava com sua família e isso bastava.

Adeus, meu vô.


H. Schneider
14 de agosto de 2006


Para saber mais sobre o excelente livro "Cachorros de Palha", leia a entrevista com o autor John Gray aqui

2 comentários:

Cassiana Domingos disse...

Li essa sua “crônica, critica ou desabafo”, como queira considera-la... não sei se escreve por hobbye, mas isso é o que menos importa, eu concordo em partes com você sobre o que escreveu, sobre vivermos vidas mecânicas e muitas vezes temos pouco poder de decisão sobre o que acontece, principalmente quanto a fatos fisiológicos... mas acredito que o homem, como animal, se vangloria demais de tudo o que cria e acha pensar... foi o que disse, achar-se superior... mas ao mesmo tempo... somos muito mais frágeis do que uma colônia de formigas (que se auto protegem), alguns se acham invencíveis, verdadeiros super heróis, mas é só tropeçar e pum, traumatismo craniano e morte... acabou... burros... ignorantes... passam a vida procurando uma casca para mostrar para os outros quem tem a casca melhor... quem conseguiu conquistar a casca mais bonita, sendo que a casca só protege o que tem dentro... às vezes de cascas espinhentas e feias, guardam poucas doces e saudáveis... as vezes as cascas mais belas guardam o fruto estragado, da vaidade, da futilidade... da amargura... prender-se a cascas (corpos e rostos bonitos, carros, roupas, eletrodomésticos) é ser um máquina, é como Descartes definiu e como o “sistema” quer que sejamos.. puras cascas, relógios, maquinas consumistas... mas ainda há chance de mudar esse fato... porque a minha vida é minha vida e eu não preciso fazer como os outros querem... meu mundinho, minha ambição, meu futuro não precisa ser igual ao de bilhões de seres humanos...
Parece fácil falar... mas é mais fácil fazer... o difícil meu caro Heleno é realmente tomar o ato pra si e tomar o controle da própria vida. Por vezes, como ontem, me pego chorando, me perguntando e me irritando com essa vida louca que se leva nas cidades... vejo pessoas todo dia dizendo, estou deprimida, estou estressada e sinto uma ponta de prazer nelas dizendo isso, para achar justificativas para seus problemas, mas elas se quer reagem, ficam como doentes, deixando a doença ou o remédio agir, para que outros se compadeçam de seus males... e depois voltam a comer comidas ruins, tomam remédios e refrigerantes para que desçam por suas gargantas, ou se entorpecem com vícios para se sentirem menos piores... ou vão as compras, se endividam e isso é o ciclo... semanas passam e é assim...
Mas dá sim para parar e refletir e escolher o que você quer e como quer levar a vida... eu tomei minha decisão e sei que tem milhares de pessoas a minha volta que vão sempre me apontarem o dedo... mas olha... mesmo assim, vou continuar tentando...
Uma ótima semana!

Cassiana
cassianadomingos@yahoo.com.br

Anônimo disse...

Estava buscando partes do meu passado no Google e me deparei com tua frase “E agora meu vô não está mais aqui em casa. Ervino Aloysio Flach. Foi enterrado hoje pela manhã”. Assim cheguei aqui, no seu blog. Fui aluno do Professor Ervino, na década de 1960. Ele foi o melhor professor que tive e meu melhor amigo. Sempre louvei o grande professor que ele foi e sua psicologia refinada, inteligente e bondosa para tratar com as crianças. Inúmeras vezes citei o nome dele nos diálogos que travei sobre educação. Contei a diversos interlocutores histórias que aconteceram conosco à época, simples para o mundo dinâmico e complexo de hoje, mas extraordinárias para mim, com dez anos de idade, curioso e vivaz, tendo por protetor o anjo da guarda Ervino flach.
Da boa terra os bons frutos. Assim, penso que se levas contigo um pouco da personalidade do professor Ervino, já tens grande riqueza.

Um grande abraço.

José Sílvio Born
silvioborn@yahoo.com.br